O desfile de platitudes e a covardia institucionalizada

Desde a queima dos arquivos da escravidão por Rui Barbosa – temeroso da “mancha” da escravidão, até a saída pela esquerda em 79, com um acordo de cavalheiros através de uma Anistia “geral e irrestrita”, a história do Brasil repete a tradição milenar de varrer um problema para baixo do tapete na esperança que ninguém mais fale no assunto.

Um dos textos mais ignorados de Marx se chama “A questão Judaica”. É um texto ignorado por bons motivos: Marx mergulha de cabeça em um certo auto-flagelamento e antecipa muito do anti-semitismo que vai caminhar de mãos dadas com o Comunismo. Mas é um texto interessante, especialmente quando fala da questão dos Direitos Humanos. Poucos textos são mais relevantes para o Brasil, e para a história do Brasil.

Quero dizer: quando a gente fala em direitos no Brasil? A frase “direitos humanos para humanos direitos” explica muito. O código é o seguinte: garantias individuais importam na medida que elas me atingem. Quando é um estranho qualquer levando porrada na delegacia, bem, pouca sorte.

Marx identificava nisso uma espécie de uso da malha institucional para o benefício de elites. Antes que vocês me acusem de petista, pensem um pouco nessa questão. A polícia civil brasileira, hoje, mata mais e tortura mais que a policia militar e o SNI durante a ditadura. Não mata os filhos da classe média. Ou mata menos. Quando mata, é notícia na Globo, escândalo. O que isso tem a ver com qualquer coisa, particularmente com o regime militar? O fato de hoje morrer mais gente em decorrência de abuso de autoridade justifica a covardia com a qual lidamos com a história do regime?

Claro que não. Mas indica que o Brasil mudou pouco. É fácil falar do assassinato do Herzog e da punição de um velho de oitenta anos: é abstrato. E a delegacia na esquina? É fácil ignorar que a classe média brasileira passou por muitos anos apoiando sistematicamente o regime, até que jovens começaram a sumir, até que o alvo tenha mudado. Os estudantes que vão para a rua para reclamar da tortura e abusos cometidos contra outros estudantes, 40 anos atrás, estão falando dos seus iguais. E o abuso cometido, ontem? A tortura no Brasil é método recorrente de interrogatório e de punição. Não é uma questão histórica. É dia-a-dia, rotina.

Falar de platitudes tipo “ditadura nunca mais” ou “tortura nunca mais”, é uma posição confortável aqui e nos obriga a perguntar “tu queres dizer, nunca mais com os que são parecido contigo, sim?”. Já que, de fato, nunca houve um momento no qual não houve tortura no Brasil, no qual assassinatos não foram práticas comuns por parte das nossas polícias. O que mudou foi o alvo. E a covardia, aquela institucionalizada durante o regime, continua forte agora. Como eu disse, é fácil dizer “nunca mais”, mas o nunca mais é uma postura cínica e meio confortável: camarada, tá ali, na rua, agora.

A história do regime militar brasileiro é complicada. E talvez seja, em vários sentidos, irrecuperável. Muitos arquivos foram queimados (literalmente e figurativamente), muita gente que poderia falar não vai ou não quer explicar o que houve. As divisões que motivaram o regime continuam por aí, inclusive as resistências a deixar o país correr o próprio curso que motivaram a necessidade de “intervenção”. Muito disso poderia ter sido resolvido por um acerto de contas na época, um acerto que teria dificultado nosso processo de redemocratização – mas que talvez fosse mais justo e menos covarde. Optamos pela saída covarde, e agora tentamos recuperar o tempo perdido com medidas tão interessantes quanto tocar tambor e fazer projeção de imagens na frente de instituições. Mais uma vez, optamos por medidas paliativas e populistas, e não enfrentamos o problema de frente: nossa polícia segue violenta, segue torturando, segue matando.

Tentamos fazer justiça diante de uma história que já perdemos e esquecemos que muito do ambiente político que nos permite, hoje, gritar contra os abusos do regime foi construído na base da anistia ampla e irrestrita. A coragem dos apelos quixotescos pela abertura dos arquivos da ditadura (que não existem mais, lamento informar aos desavisados) e punição de velhos de oitenta anos (vamos ter uma série de decisões judiciais para pendurar nas paredes, e teremos, imagino, finalmente calado os gritos dos fantasmas da ditadura) está nos eixos da covardia da Anistia.

Eu sei que muitos dos que estão reclamando, agora, vão argumentar que reclamar de uma coisa não implica em concordar com os abusos atuais. Mas que trata-se de algum esforço de educação, ou algo do tipo. Como dizem os americanos, eu acho isso cold comfort. Tá bom. Mas e daí?

Eu não discordo que seria ideal a gente ter uma conversa franca e aberta sobre o que aconteceu no regime militar. Algo nos moldes do que aconteceu na África do Sul depois do Apartheid, por exemplo. Mas é preciso lembrar que, nesse momento, a conversa está sendo protagonizada por dois polos do debate. De um lado, as viúvas do Regime, ainda convictas que protegeram o Brasil da sua própria determinação – protegeram o Brasil da própria instabilidade e imaturidade democrática. Do outro, os que participaram da resistência armada e do movimento estudantil, gritando que contra o regime não havia outra alternativa senão pegar em armas. A discussão vira uma infinita justificação dos meios e de quem deu o primeiro tiro. Ou seja, volta a discussão de platitudes, e de um retorno covarde aos termos do debate ao qual os dois lados já estão acostumados.

O problema aqui é achar que tem um lado “certo” e “errado” da história. E é essa tranquilidade epistemológica que vem com a certeza de estar do lado certo de um “problema” que nos permite seguir com os mesmos problemas de 40 anos atrás . Não acertamos as contas com o nosso passado e não nos permitimos sentar para realmente falar sobre o que acontece agora – e como o que acontece agora reproduz as mesmas dinâmicas de 40 anos atrás.

Em algum lugar no inferno, tomando um drink com Lenin e Stalin, Marx deve estar dando gargalhadas da nossa cara de idiota. Estamos nos repetindo como farsa e nem estamos nos dando conta disso.

7 comentários

  1. concordo plenamente com o trecho “nossa polícia segue violenta, segue torturando, segue matando.”
    a polícia civil segue matando, a polícia militar muito mais, como se não houvesse amanhã.
    acho bacana cantar a pedra da violência dentro das delegacias, da tortura e dos assassinatos, que continuam acontecendo e, aparentemente, aumentando em PG.
    mas é legal tb pensar um pouco em como é forte a presença da polícia militar nas delegacias civis, principalmente no nordeste; como as duas corporações se comportam em um quase-mimetismo ideológico, dentro das delegacias, nas rondas, nas batidas e no enfrentamento com a população; e como o sentimento de impunidade e de blindagem é forte entre eles, seja pelo benefício da justiça dos pares de um lado, ou pelo benefício do poder de voz e de fogo, influenciando decisões, do outro.

    não acho que dá pra medir a herança exata do militarismo de 64 (consigo assumir apenas que é forte), em nenhuma das partes, mas também não dá pra entregar de bandeja essa “vitória”. dizer que os problema atuais são importantes e urgentes é uma coisa, mas não acho que a cobrança pelos crimes do passado sejam abstratas.
    conceder isso, é conceder aos criminosos de outrora a mesma tranquilidade de espírito que não queremos que os torturadores-assassinos de hoje desfrutem, agora ou em 50 anos.

    não sei se o dissenso é necessário pra chamar atenção para a urgência da rotina violenta de hoje em dia. a não ser que ache que os torturadores de antes caducaram a culpa. torço pra que não seja disso que estamos falando

    1. problema é que mesmo que a gente condene esses velhos, eles não podem ser presos. vamos fazer o que? Pendurar as sentenças nas paredes e cantar vitória? A cobrança é abstrata na medida que ela é ineficiente… mas como eu disse, eu SERIA totalmente pelo resgate do debate e que a gente fosse conversar sobre essas questões da Ditadura abertamente, um jogo com todas as cartas na mesa. Mas isso implica, contexto brasileiro, acreditar em mundo de moranguinho. Não vai rolar, pq não tem COMO rolar. Os documentos de todos os lados foram queimados, quem pode falar não vai falar. Ou os antigos comandantes do SNI vão largar mão de quem fez o quê e os antigos membros do MR8 vão abrir a boca pra colocar o cu do primeiro escalão do atual governo na reta?

      1. acho que esse é um exercício de futurologia muito complicado (qual não é?).
        entendo as razões do ceticismo. elas estão aí, legitimadas pela blindagem militar.
        mas aceitar que elas são assim e ponto é aceitar que os militares de hoje em dia são violentes, torturadores, assassinos e ponto.
        é aceitar que o cara que morreu ontem, numa ação policial, morreu e ponto. os policiais envolvidos nessa batida estão na esfera blindada da justiça especial e, por isso, não podem ser incomodados.

        acho que uma pressão popular como a que houve essa semana, partidária ou não, dá um bom indício do tipo de resposta que os militares podem receber, caso se torne pop defender o pobre espancado na delegacia escura do interior.

  2. A questão da futurologia não é tão especulativa quanto tu implica. por exemplo, que qualquer condenado não vai ter que prestar contas pra sociedade tá estabelecido no código penal. Essa gente tem tudo mais de 70 anos. Até transitar em julgado os que forem condenados vão estar ou mortos, ou incapazes de cumprir pena. E aí? Qual o sentido da condenação? Estabelecer mais uma vez o imperativo da impunidade no Brasil? A nossa tendência milenar de dar sentenças que não são eficazes?

    E não sei, qual a mensagem que isso manda pros policiais atuais? ESPEREM! A HORA DE VOCÊS VAI CHEGAR! DAQUI A 30 ANOS, E SE VCS BADERNAREM COM A CLASSE MÉDIA! BWA-HA-HA!. Entende?

    Ademais, se vamos depender de gente batendo tambor e fazendo apresentação de slide como indício, estamos mal arrumados…

    1. acho que a condenação, mesmo tardia, tem algum sentido. o protesto, mesmo tardio, também.
      ainda que seja pra efeitos morais e não, propriamente, penais.
      a lei militar não deve mudar agora, tampouco deve deixar de existir tão cedo. nenhum desses caras deve ir preso (ou sequer perder seus privilégios).
      mas é muito mais adequado pra um país de democracia jovem lidar com essas cobranças legítimas (já que pessoas foram presas, foram assassinadas, sumiram – mesmo que exista um recorte social forte aí, não acho que seja esta a questão) do que deixar pra lá e dar como matéria vencida.
      o que Collor fez não era criminoso até que se criou o crime que ele cometeu (depois de seu impeachment).
      óbvio que este exemplo fala de esferas de interesses bem distintas, mas ele é ilustrativo de um país que não adequou à suas próprias jurisprudências.
      se vai dar em alguma coisa, não dá pra saber. é deste exercício de futurologia que eu estou falando.

      só uma coisa: não acha que o argumento da isenção penal de um possível condenado é perigoso, no sentido de conformar sobre a isenção penal de possíveis condenados de crimes que acontecem hoje em dia, rotineiramente?

      quanto ao tipo de protesto, concordo que não parece ser a melhor estratégia, mas não acho que desmerece a causa.

  3. Eu acho que a gente não discorda em quase nada, Breno.

    Não sei se é o caso de “deixar para lá” como matéria vencida. Mas eu gostaria de saber em quais termos vamos abrir esse abelheiro. Vão ser os termos da atual comissão da verdade? Ou vamos também chafurdar na lama do movimento social de base e das guerrilhas?

    Não estou dizendo que existe equivalência. Acho que não existe. Mas nem toda a resistência que houve ao regime foi, exatamente, dentro do limite do tolerável (mesmo para resistência a regime totalitário). Esse crime precluiu?

    Se vamos fazer a história do regime, então vamos fazer a história do regime, porra. Como a questão é colocada, hoje, denota que existe um lado “certo” e um lado “errado” na questão. Isso nos coloca, direto, na posição onde os argumentos vão sendo repetidos até a nausea.

    Os milicos dizem que não houve crime, pois as medidas foram para evitar um regime totalitário e uma reação a violência da oposição.

    Os que tomaram parte na luta armada dizem que estavam resistindo ao regimee e a truculência policial da única forma que foi possível.

    40 anos depois, os milicos que tomaram parte estão aposentados ou em vias de, e os filhos dos que apoiaram o golpe continuam no discursinho fuinha da proteção do Brasil (que é papo anti-democrático mal disfarçado)

    Os que estavam na luta armada, muitos, estão no legislativo, judiciário, executivo. E não devem estar lá muitos dispostos a falar do que rolou. Vamos forçar eles também?

    A minha situação ideal é a que a gente coloca essa gente toda para falar em público. De novo, o modelo da Africa do Sul me vem a mente. Mas a comissão da verdade, como está, vai distribuir um monte de decisões condenando pessoas que cometeram o que o regime chama de “desvios” e os militantes chamam de “rotina”. Decisões que, vale lembrar, vamos seguir pendurando nas paredes e observando.

    É covarde e revoltante que a gente não olhe pelo retrovisor. Eu concordo com isso. Mas eu tenho problemas com COMO a gente está fazendo isso, porque eu acho que estamos reproduzindo as mesmas dinamicas de debate que sempre fazemos. Optamos pelo debate fácil, que reproduz os discursinhos de sempre. É só ver os argumentos de cada lado. Ninguém quer sair da própria zona de conforto, por que ambos os lados já partem do lado que tem razão….

    (arf, quase re-escrevi o post, desculpa)

    1. é. parece que não estamos muito distantes mesmo.

      a comissão da verdade, mesmo toda esburacada e esquisita, parece ser um ponto de partida razoável pra esse debate mais maduro.

      não vai ser rápido, fácil, indolor e minimamente claro, mas acho que já vai ser alguma coisa.

      bom, estou todo torto de coluna travada aqui. vim mais pra dar sinal de vida mesmo. haha

      valeu pela discussão, cara.

      abraço.

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