Naturalismo: o que dizer em antropologia?

Por Luis Rosa

 

Esta semana, na aula do professor Stein, tivemos uma discussão em torno daquilo que se pode chamar de ‘visão naturalista’ em antropologia. Bem, não precisamos citar autores e fazer tantas referências sobre isso: não é difícil pensar o homem naturalmente. Basta conceber as suas propriedades, seja a propriedade de ser político, a propriedade de ser bípede ou a propriedade de fazer música, como sendo naturais, ou seja, circunscrita às leis naturais presentes também em fenômenos onde ‘não há consciência’.

O professor Stein, como muitos outros, prefere enfatizar que esta visão naturalista sobre o humano é deficiente, pois não estaria levando em conta o homem como produtor de sentido, ou se se preferir, como significante. E esta característica de produzir sentido é que permite o homem a, entre outras coisas, questionar sobre a sua própria essência, a investigar cientificamente sobre seus genes, e mesmo a ter um ponto de vista não naturalista sobre quaisquer fenômenos. Tudo bem.

Mas isso é curioso: podemos apontar que o assim como é natural aquele passarinho fazer ninho nos galhos do pinheiro, é natural do homem ‘produzir sentido’. Parece claro que “sem humano não há sentido”, sendo que o valor de verdade está circunscrito á nossa própria condição. Sem humano não há sentido porque o humano produz o sentido na sua relação com o mundo, mas ele dá este sentido para si mesmo. Este sentido, é então um sentido humano. Logo se não existirem humanos, não haverá sentido. O que há de supra-qualificador em relação ao humano nisso?

Ainda se pode ver o antropocentrismo de origem mística e cristã nestas visões do homem, quero dizer, nestas visões não naturalistas. O homem ainda é o filho de Deus que compartilha uma parte de sua natureza com este, que é a alma. Ora! Precisamos resignificar este homem embotado por uma luz que não lhe pertence! Talvez as visões naturalistas do homem nos ajudassem mesmo a ter maior autocompreensão, na medida em que por meio delas poderemos conceber os efeitos causados por teorias antropocênctricas na própria humanidade.

Mas porque é tão tentadora a idéia de que a produção de sentido, ou algum outro fator de ordem cognitiva, nos eleve a um patamar acima da naturalidade? Subjetivamente, temos um acesso direto ao que pensamos e sentimos, de forma consciente. Sabemos qual é o conteúdo que está circunscrito à nossa própria mente. Isso é válido pelo menos para o conteúdo atual. Mas para além disso, temos um acesso direto à forma como procedemos diante de tais conteúdos. Isso é: sabemos sobre as nossas atividades mentais. Estamos familiarizados com nossas próprias afecções e cognições, e por conseguinte, estamos familiarizados com a nossa ‘forma interna’ de ser. O mesmo não se aplica a outros particulares: não tenho acesso direto aos conteúdos mentais e às formas de atividade mental de indivíduos tais que supostamente também têm atividade mental.

Mas é diferente falar desta discriminação em relação a um indivíduo da mesma espécie e a um indivíduo de espécie distinta. Se tento responder o que é o canino, ou o que é o cão, ou ainda, o que é ser um cão, não posso contar com o acesso ao conteúdo e à atividade mental de algo que é dito ser um cão. Mas sei como pelo menos um dos seres humanos sente as coisas, sei como um deles pensa, e este ser é aquele que eu mesmo sou.

Não parece razoável crer que o meu ‘senso de especialidade’ provenha destes fatores de acesso ao modo de ser? Por que não é mais um modo de ser natural? Ora! Porque é o meu modo de ser.

(São somente alguns apontamentos para discussão)

4 comentários

  1. filipecampello · · Responder

    Faço da afirmação final uma questão:Por que é o “meu” modo de ser? ou seja, como é possível ser próprio (ou “natural”, se quiseres) do humano “produzir sentido”?

  2. Bom, em relação à pergunta do Filipe: acho que ela é pertinente, e nem mesmo algum texto que eu conheça tenha se aprofundado na questão. A pergunta remete a uma ambiguidade: o meu modo de ser não é somente meu como se este pronome possessivo se aplicasse tão somente ao particular que sou, mas também à espécie a que pertenço. Existe então um elemento generalizador quanto ao modo de processar conteúdos mentais particulares, ou seja, tenho acesso cognitivo (ou ‘epistêmico’) a estas operações e mantenho a crença, com razões, de que estas operações estão presentes na atividade cognitiva de outros humanos, indivíduos congêneres.
    Mas é claro, prioritariamente a esta generalização existe o “meu” modo de ser mais restritivo, e é este, ao menos inicialmente, que hesitamos em naturalizar. Por quê o agente cognitivo encontra empecilhos para naturalizar o seu modo de ser? Ora, em primeiro lugar, este agente não está contemplando a sua própria atividade cognitiva de um plano ‘em terceira pessoa’, ou seja, não está a observar um fenômeno ‘externo’ a si mesmo, um fenômeno para o qual possa supor uma independência em relação a sua própria mente. Assim, a atividade cognitiva não é naturalizada porque os fenômenos que este agente cognitivo naturaliza são sempre vistos a partir daquela perspectiva de ‘terceira pessoa’. Existem outros fatores que contribuem para que o agente cognitivo não naturalize a sua própria atividade mental, entre eles o fato de que possamos reviver processos mentais já vividos por meio de uma introspecção, com a ajuda da memória. É claro que se trata de dois processos ‘token’ distintos, mas o agente os enquadra em um mesmo ‘type’. E este reviver dos processos provém da deliberação do agente, coisa que geralmente não acontece em relação aos fenômenos que ele geralmente naturaliza.

    Em seguida respondo o Marcos (estou indo almoçar)

  3. Caro Marcos: o fato de Aristóteles apresentar uma especificidade do ser humano em relação a outras espécies e não ter ‘falado com Jesus’, não quer dizer que o antropocentrismo não tenha origens místicas ou teológicas. Afinal, Aristóteles não é o primeiro a ter uma visão antropocêntrica, e a origem deste ponto de vista deve remontar a um tempo anterior a ele. Parece ainda claro que a visão antropocêntrica ganhou ênfase com as religiões pós-pagãs, justamente pelo fator de defenderem a existência de uma alma que só existe no homem, e cuja natureza reside na substância divina.
    Tu perguntaste o que eu queria dizer no final do post, ou seja, perguntaste pela relação que estabeleço entre um ponto de vista não-naturalista e o acesso que temos ao nosso ‘modo de ser’. O que quis dizer é que, quando não temos uma visão naturalista sobre nós mesmos, uma das principais causas disso é que temos um acesso privilegiado à nossas formas de cognição (entre elas, talvez, a ‘produção de sentido’), o que nos leva a pensar que estes fenômenos que presenciamos em nossa mente, sejam estritamente distintos dos fenômenos que consideramos normalmente como naturais (p. ex., a caneta caindo, o nascer do sol, etc).
    Bom, talvez isso não tenha ficado entendido no post, e por isso talvez tenha surgido desentendimentos, e isso nos leva para as tuas perguntas subsequentes.
    Em relação a 1): quero responder por que é plausível a tese de que o homem compartilha a sua natureza com a Natureza, mas temos vários problemitos aqui. Talvez o primeiro a ressaltar é que o significado de ‘Natureza’ com ‘n’ maiúsculo não precisa ser entendida como uma entidade determinada, mas como um complexo de relações. Não se trata, portante, de uma simples classe, como a classe das coisas naturais, mas além disso de um conjunto de relações entre as coisas ditas naturais. Bem, por que em filosofia é plausível sustentar que o homem faça parte deste conjunto de relações, e que não há alguma relação ou propriedade humana que não esteja circunscrita à este conjunto? Em primeiro lugar, não temos boas razões para pensar que algo em nós não seja natural, quer dizer, aqui o filósofo não se distancia do homem comum e do âmbito ordinário, num sentido meramente negativo. Podemos levar em conta crenças relativas à natureza da alma, mas não contamos com evidências comuns (isso é importante: comuns, que sejam comuns a mais de um indivíduo, ou públicas) que corroborem estas crenças. Se queremos uma teoria filosófica que respeito o espaço intersubjetivo de razões e crenças, então não será a teoria filosófica do divino espírito santo que iremos preferir.
    Em segundo lugar, o nosso âmbito de vivências é o âmbito natural, por definição (isso não é uma prova contra a tese de que podemos estar sonhando, ou que tudo seja ilusão). E daqui se extrai o seguinte: se temos algo que difere em natureza deste âmbito no qual estamos inseridos, como é que duas coisas de natureza distintas conseguem estabelecer relações? Ou suprimo estas relações, dizendo que elas não existem, e neste caso tenho que explicar porque tenho a impressão de que tais relações existem; ou coloco os dois ou mais termos da relação na condição de dividirem sua natureza, que é a proposta naturalista para a qual, como você observou, estou inclinado (apenas inclinado e não deitado sobre).
    Quanto à observação sobre as formas de enunciação, devo dizer que não é preciso que eu me comprometa com a tranformação de enunciados em primeira pessoas e, enunciados de terceira pessoa, ao adotar um ponto de vista naturalista sobre mim mesmo e sobre a espécie que sou. De acordo com esta forma de pensar um naturalismo antropológico, presa à explicação de porque é difícil pensarmos naturalisticamente a nós mesmos, enunciados em primeira pessoa não precisam diferir em referência com relação a enunciados em terceira pessoa. A diferença importante aqui é entre o que temos a intenção de referir com o enunciado, e o que referiríamos de fato se houvesse esta referência.
    As perguntas 2) e 3) merecem algo à parte, que devo postar em breve, endereçando às tuas perguntas. De qualquer forma, conforme vemos nas tuas perguntas, o ponto de vista naturalista é bastante controverso. Acho que as tuas perguntas atacam pontos basilares de uma tal teoria, e achei-as bastante interessantes. Continuamos a discussão!
    abrç

  4. Marcão:
    Bem, eu posso tentar ‘salvar’ a filosofia em pelo menos dois sentidos: naquele sentido em que não quero perder o meu maravilhoso mundo platônico de idéias, ou mundo do espírito, e que portanto não pode ser refutado (como refutar uma obra literária?), e naquele sentido em que não quero perder a capacidade de tentar desenvolver uma área do conhecimento que reflita sobre as condições de possibilidade do conhecimento, interpretação ou entendimento, que procure um fundamento para pelo menos não estar em desacordo consigo mesmo (lógica). Eu não tentaria salvar um curso de filosofia através da primeira motivação. Crenças teóricas, pelo menos não creio assim como você põe, não devem ser balizadas com crenças comuns, mas o que é que lhe impede então de defender a teoria de que a chuva é os pinguinhos do suco de laranja de um grande monstro (invisível) que guarda todos os cantos da galáxia? Trata-se simplesmente de não contarmos com razões intersubjetivas que apóiem esta idéia. Isso não é o mesmo que dizer que o consenso é a verdade, ou que ele seja um critério de verdade: trata-se de uma condição negativa para algumas espécies de teorias e cosmo-visões, que opera por ‘modus tollens’. Awô!

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