Constituição enquanto sistema fechado: reflexões semânticas

A idéia do contrato social surge em Hobbes para dar conta de certas facetas do chamado Corpo Político, este corpo político expressa as demandas de um indivíduo moderno e pontencialmente egoísta. Esta situação anárquica na qual o indivíduo monádico é jogado por Hobbes causa uma certa confusão que só pode ser controlada pela emergência de um sistema normativo imposto de fora – mas ainda minimamente representativo das vontades egóicas dos indivíduos . Hobbes então elabora a idéia de contrato social para regular o comportamento de indivíduos, que agora deslocam seus corpos políticos do estado de natureza para o estado social.

Duas observações de ordem metafísica: para Hobbes, o indivíduo apenas adquire relevância enquanto indivíduo quando seu corpo é inserido para dentro do estado social – isso quer dizer, quando ele deixa de ter uma relevância monádica e individual para adquirir uma relevância social, quando ele é exposto ao contrato (e portanto, ao poder soberano). Esta sutileza Hobbesiana inspira escritores tão diferentes quando Agamben e Janine Ribeiro a investigarem as implicações da noção de contrato para a noção de indivíduo. Agamben vai fazer um elogio da situação anárquica, mas ele faz isso deixando de lado a noção de indivíduo egoísta defendida por Hobbes e tenta demonstrar como a inserção do indivíduo no campo político expõe  a vida humana a um controle estatal que acaba com as possibilidades criativas do indivíduo – que estaria melhor sem estado. Tal hipótese pode ser facilmente deixada de lado uma vez que percebemos que este simplesmente não é o caso. Indivíduos não estão melhores na situação anárquica – pelo contrário! – Hobbes, junto com todos os contratualistas, percebeu bem que a tendência da não-regulamentação joga os indivíduos na situação de dilema, causando mais conflito e diminuindo o espaço para expressão individual. O estado anárquico e o estado totalitário tem isto em comum: eles diminuem o escopo de expressão individual, um pela situação de dilema e o outro pelo fator não-representativo. Aqui, não se trata de re-inventar a roda, mas apenas de perceber que o movimento pela criação do estado moderno é justamente apresentar alternativas a organização anárquica e tirânica que se apresentava na Europa. Não é que as tentativas de auto-regulamentação não tenham sido tentadas, é que elas não funcionaram.

A partir de Hobbes vemos o surgimento, então, de uma teoria do contrato social – que depois adquire os contornos de uma teoria da constituição. Daí temos na idéia de direitos fundamentais a tal da âncora para a representatividade do mecanismo (ou dispositivo, se preferirem) constitucional. Não quero perder tempo aqui com sutilezas maiores sobre teoria constitucional. Ao contrário, quero propor uma perspectiva semântica fechada para a interpretação da constituição enquanto um sistema de regras auto-referente.

Isso vai pressupor algumas coisas.

Estou aqui com influência do Wittgenstein, mais precisamente sobre a questão das regras e do seguir regras. Como seguimos regras? A partir de qual referente? Se a constituição é o referente que nos dá o set de regras que precisamos seguir, como devemos montar e sobretudo interpretar uma constituição.

Quero tentar trabalhar isso a partir da chamada estrutura Kripke para formalização de sistemas. Admito, com isso, que a constituição nos dá uma série de predicados que [1] podem ser seguidos e [2] são finitos. A partir disso, temos a estrutura básica de um set inicial [S] de domínio possível a partir do qual vamos destacar um número de princípios [I] que constituem o set básico de referências. Isso poderia ser chamado de “direitos fundamentais”. Os direitos fundamentais, portanto, dão o suporte referencial direto e necessário para o que segue em um formato legislativo.

As disposições não principais, ou seja que não estão contidas em [I] são relacionadas à estas de forma transitiva (direta) e conexa (coerente) , esta relação T-C é expressa logicamente de tal forma:

(RS × S) com ∀sS (∃ s‘ ∈ S [(s,s‘) ∈ R)]

Isso significa que através da predicação dos estados em [S] por [R] temos um número infinito de possibilidades, de modalizações.  Mas nem todas as predicações serão transtitivas e conexas em I, portanto, apenas podem ser válidas aquelas expressoes modais que possam ao mesmo tempo serem coerentes com [I], este processo de determinação das modalidades extra-legislativas ou não-principais que são conectadas a constituição (ou ao corpo legislativo, de forma mais geral), é o chamado Labeling (nomeamento). Em princípio, o processo de labeling pode ser considerado incontrolável – parece que Derrida teria entendido isso bem. No entanto, esta é uma saída fácil para o problema aqui demonstrado. Como disse, é possível, sim, argumentar de forma consistente e direta as possibilidades linguisticas que estão de acordo com determinadas estruturas gramaticais prévias (assim como é possível determinar quais sentenças são ou não são gramaticalmente corretas, muito embora nossa capacidade de predicação seja infinita).

Assim, o processo de modalização constitucional poderia seguir um padrão coerente em termos M=(S,I,R,L).

Contudo, existe um problema em Kripke – e na forma analítica de lidar com a questão da predicação, de uma forma geral-, que é a linearização do processo lógico. Kripke cai de cabeça na questão do psicologismo ao expressar a forma de modalização em termos de labeling direto, precisamos também levar em consideração o quanto o processo de labeling e de modalização (ele mesmo) não pressupõe a temporalização das disposições gramaticais contidas em cada uma destes caracteres lógicos – ou seja, como elas pressupõem um mundo-vivido onde predicamos e um corpo-vivido que predica estas asserções.

Mas isso ultrapassa as questões semânticas e entra na segunda parte da minha reflexão, sobre a temporalização da semântica através da sintetização passiva e ativa destas regras.

Antes de prosseguir , alguns esclarecimentos:

– Quando eu digo que o direito tem uma linguagem privada, isso não significa que esta linguagem seja natural. O processo de constitucionalização é além do ponto que estou tentando colocar aqui. No entanto, no momento que existe algo constituinte, este algo sugere ao jurista um set de regras que funciona nos moldes de uma linguagem privada – mais ou menos como a linguagem computacional sugere um set de regras ao programador.

– A questão da consistência e da transitividade também não é natural – embora seja naturalizável. Estes critérios são colocados para dar um controle e um domínio de opções  possíveis (finitas) com as quais podemos trabalhar normativamente. Sem eles, o direito se torna impossível – e talvez seja justamente esta a conclusão natural que aqueles que trabalham com a questão da incontrabilidade do sentido precisam enfrentar: a interpretação desconstrutivista do direito torna o direito logicamente impossível, e torna a operação juridica uma piada onde qualquer predicação possível é aceitável a partir da premissa fácil e preguiçosa de que o sentido é sempre perdido, excetuada alguma revelação mística ou um ponto de vista privilegiado.

– Concordo que esta interpretação ainda não da conta do aspecto social e local da intepretação, mas esta parte da minha reflexão entra na parte temporal desta análise, que vai ser enfrentada posteriormente.

5 comentários

  1. […] Fazia tempo que eu tava trabalhando nisso. Esta é a primeira parte, sobre semântica. A próxima vai ser sobre temporalização. Passem lá para detonar tudo. […]

  2. Puxa vida, como é que escrevemos sem saber dois posts completamente opostos!?

    :D

    Seguinte, só uma pitada sobre o Agamben: não creio que Agamben reivindique uma volta ao estado “natural” na anarquia, mas uma espécie de “profanação”, isto é, um novo uso de algo que já existe. Isso não significa que tenhamos que retornar à barbárie; ao contrário, trata-se de fazer um novo uso de todas as estruturas jurídico-políticos “fechando a porta da lei”. Não se trata de uma lei destruída; trata-se de uma lei consumada.
    No tangente ao indivíduo, creio que Agamben responderia que não existe “o” indivíduo. Ser “humano” já é ser algo capturado em um dispositivo que não é natural. Atribuir, portanto, propriedades egoístas ao indivíduo “naturalmente” é uma falácia que toma a contingência pela necessidade.

  3. Tá, sobre os artigos diretamente OPOSTOS. Eu acho que a gente tá falando sobre coisas um pouco diferentes – mas admito que eu dei um bico no teu blog antes de terminar aqui (recebi a atualização no RSS); embora eu ainda não tenha lido com calma o que tu escreveu lá. :) Mas até gostaria de saber como tu veria esta primeira proposta de uma reformulação do sistema de interpretação normativo – afinal, ao menos é uma proposta para pensarmos alternativas com as quais ainda podemos lidar com um direito operacionalizável. Creio que tu identificas questões importantes – enquanto problemas – mas talvez algumas das propostas que colocas tornem o mecanismo jurídico não-operacionalizável ; tornem o direito francamente impossível.

    Sobre o Agamben, vamos por partes. (e isso vai demorar):
    A questão do movimento “profanatório” em Agamben e da restituição ao “uso comum”, parece-me, um elogio do pré-político. Ou seja, da situação onde o ser-si-mesmo expressa uma forma de vida autêntica – e não uma reprodução da ordem sistemática-dispositiva vigente. Este elogio do fora-da-lei, onde o Agamben me parece ecoar claramente Nietzsche e Deleuze, desloca o corpo-político do indivíduo da situação de exposição para a do que chamaste de profanação. Se preferires, retira-se a sacracidade do dispositivo e substitui-se por uma autenticidade profanatória. Mas o que isso tudo quer dizer? Isso quer dizer que as estruturas políticas são identificadas por Agamben como potencialmente destrutivas ao individuo – elas totalizam as nossas práticas-de-si, e nos transformam em corpos dóceis. Se isso tudo soa como Foucault, é porque Agamben pegou este movimento de totalização emprestado do Foucault – na questão da Biopolítica – e tirou fora o elemento da Anatomia e privilegiou a tal da Tanatopolítica. Neste sentido ele faz uma elogia do estado anárquico, claro, não o estado anárquico Hobbesiano, mas desde indivíduo situado para fora do Estado.
    Sobre a existencia do individuo. Cuidado aí. Individuo/humano e dispositivo são coisas complicadas no Agamben. Dispositivo natural, por exemplo, parece pressupor a noção dupla de substancia com a qual Agamben trabalha, assim como a questão do Humano está sempre inserida para Agamben – no meu entendimento de forma totalmente anacrônica – no contexto da sacralização. Sobre a falácia que toma a contingência pela necessidade, uf.
    Uf, porque não entendi muito bem como uma atribuição natural de propriedades egóicas, na tradição do monismo, NÃO seria contingente. Qualquer elemento situacional é “contingente” na tradição monística, portanto, é claro que o egoísmo é contingente na medida que o ser-humano, ele mesmo, é contingente. Mas ele é necessitado pela situalização do ser humano, primeiro enquanto jogado na anarquia e depois predicado enquanto político. Não estou certo, no entanto, em que medida o ser humano tem relevancia ontológica para Hobbes antes da situação no Leviathan. Mas isto seria tema para todo um novo post – e entra um pouco no que vou colocar na avaliação sobre a temporalização.

  4. Tenho pouco tempo, depois respondo outras partes da tua resposta.
    Queria só focar no Agamben. Eu não concordo com a tua leitura de que Agamben seria um autor nostálgico de uma autenticidade perdida. Me parece o tempo todo que Agamben não é entusiasta – e ele diz isso várias vezes nos textos – de um “pré-político”, mas de um “pós-político”, isto é, de uma etapa em que o político vinculado ao Estado se consuma. Da mesma forma, o humano “autêntico” não é um humano “natural”, mas um humano pós-sujeito, já não mais capturado pelos dispositivos. A infância me parece aqui não uma espécie de retorno ao passado; mas o exercício da “potência” infinita do pensamento que não fica esgotada no “ato” que transforma o homo sapiens em sujeito/indivíduo ou o político em estado. Em suma, não vejo o Agamben como autor nostálgico, mas justamente o oposto: messiânico e revolucionário.
    Sobre a questão dos dispositivos fiquei influenciado pela leitura de “O que é um dispositivo?”, último texto que li dele, para usar essa forma de expressão. Normalmente teria usado a questão da linguagem tal como ele trabalha no “A Linguagem e a morte” ou nos textos do “Potencialidades”.

  5. Cara.

    Ja te disse que simbolos matematicos e fatoriais tornam a analise de um texto metade IMPOSSIVEL e metade (preconceito bobo, admito)ABORRECIDA para mim.

    Enfim.

    O paralelo do contrato hobbesiano que SUBMETE a todos (a “rodo”) com a Constituicao ficou legal.

    O que tem me PERTURBADO nos ultimos tempos esta justamente nesta questao: o contrato-constitucional pode ser estabelecido em termos atemporais “e pronto” ou ele carece de legitimidade contingente?

    O que regula(ria) essa legitimidade? Uma vontade da maioria? daria MERDA, sem duvida…

    Porem, in the other hand, para que serve uma “Constituicao” para ser interpretada “enquanto Constituicao” e reger os “rumos” politico-juridico-sociais de um povo que nao se congrega diante de boa parte daquelas ideias-valores?

    Mais: diante da ineficacia plena dos termos do contrato para com alguns, poderiamos ainda tomar essa premissa como base para um raciocinio?

    Mais uma: tenho um certo receio dessas visoes “apocalipticas” que apregoam esse tel (lendario) “Estado de todos-contra-todos” que adviria se abrissemos mao do que temos. Ele existiu, mesmo, nos moldes em que os Contratualistas disseram e temiam???

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