Peter Singer vai para a imprensa

Peter Singer, vocês sabem, é provavelmente o filósofo que mais dá a cara para bater no planeta. Entre outras coisas, o australiano, professor em Princeton, por um bom tempo deu aula com um segurança na porta – por indicação da faculdade – por causa das sucessivas ameaças de morte que ele recebeu por sua defesa do aborto e do infanticídio.

De qualquer forma, o Singer lançou este livro novo, o “The life you can save“, que trata de algumas questões que ele vem tratando desde o início da década de 90. Lembro de um exemplo, que ele traz em um artigo de 92, sobre o paradoxo do consumo. O argumento do Singer foca no princípio do sacrifício e no que as tuas opções de consumo implicam em termos de consequencias morais. Portanto, porque comprar um diamante de 18 quilates se tu pode, com este dinheiro, fazer uma doação para uma ONG que alimenta crianças na Somália? Porque ir em um restaurante caro, se tu podes usar este dinheiro para financiar vacinas em uma comunidade no oeste de Burundi? Se encontrar com um colega e um professor em um restaurante árabe, para discutir filosofia e futebol? É irracional se tu pensares que poderias estar usando este dinheiro para ajudar na criação de uma estação de água potável em Ruanda.

Singer aponta, justiça seja feita, o quanto esta situação é complicada. Pelo menos no que eu li. Mas eu creio que o fato de Singer ser incapaz de chegar em situações de “tranquilidade moral” ou onde ele consiga dizer “uma vida não-franciscana é uma vida justa”, aponta os limites do perfeccionismo moral – e mesmo no consequencialismo levado até as últimas consequencias.

Mas Singer está preocupado, é claro, com as pessoas que tem grandes fortunas – não tanto contigo ou comigo. Mas com o cara que dirige um Audi novo em Porto Alegre.  Para o Singer, este sujeito é basicamente um cúmplice de assassinato. Ao optar pelo Audi, em um contexto onde crianças passam fome nas esquinas, o cidadão está sendo um tremendo de um egoísta, e o egoísmo moral não é sustentável enquanto postura ética na filosofia do Singer.

O que eu achei interessante, então, é que o Singer foi para a imprensa divulgar o livro dele. Ele falou com o Bill Maher e com o Steven Colbert recentemente. O Bill Maher foi legal. Deixou o Singer falar, tentou argumentar este ou aquele cenário:

O Walter fez o favor de postar o vídeo do Singer no Colbert Report, tu pode ver aqui. Conversando com o Walter, a reação dele foi: “é impressionante, filósofo perde sempre”. Mas o que me chamou a atenção que o Singer foi no programa do Steven Colbert! O Colbert é um sátiro, seria mais ou menos como o Mendonça indo divulgar o livro dele no programa do CQC ou dar uma entrevista para o pessoal do Casseta e Planeta.

Especialmente interessante é como a argumentação do Singer fica frágil diante do argumento cínico, ou mesmo diante das oposições totalmente céticas do Colbert. Se tu não consegues responder as perguntas mais simples, como tu pretendes que tua argumentação se sustente? Eu sei, o Colbert usou uma série de perguntas retóricas. Ainda assim, é sintomático não conseguir respondê-las. E a última pergunta é mortal: existe algo mais sem sentido, que seja um desperdício maior do que escrever um livro e VENDER ele?

No fim das contas, esta é a questão principal que o Singer ignora. Viver uma vida feliz implica em opções que são muitas vezes irracionais, ou mesmo não-justificáveis prima-face. Mas tu comprares um anel de diamante para a pessoa que tu gosta pode significar muito para ti, pode ser uma questão de experiência, pode ser uma forma de tu construir a tua vida. Se tu optar por um modelo perfeccionista de moralidade, de pensar na vida que tu poderia estar salvando em cada uma das tuas opções morais, tu provavelmente não vais fazer nada.

A outra coisa que eu creio que precisaria ser discutida é a tensão entre altruísmo e egoísmo. O Emerson, que é um cara que merecia mais crédito enquanto filósofo, tinha a idéia do Altruísmo Interessado. Que tu só faz coisas para os outros quando tu queres te sentir bem. Talvez o primeiro passo para fazer com que pessoas parem de se importar mais em ter um Audi do que em ajudar o guri na esquina seja convencer que existe uma série de vantagens em fazer esta opção.

Mas isso traz uma outra pergunta: o luxo é ético? A opção pelo luxo é consistente com uma vida defensável do ponto de vista moral? Eu não sei a resposta para esta pergunta, mas creio que a resposta precisa dar conta da história do luxo. Porque as pessoas querem coisas luxuosas? E até que ponto somos capazes de generalizar este “luxo”. Pessoalmente, acho a opção por uma vida orientada apenas para estas coisas um tanto sem graça.

Também perpassa esta discussão a questão da filosofia moral enquanto disciplina propositiva ou disciplina descritiva. Quando fazemos filosofia moral, devemos fazer proposições morais? Ou devemos apenas descrever formas de se relacionar com o mundo que chamamos de “moral”, que dizem sobre valores descritos em termos de certo-e-errado?

O Singer aposta muito alto, e creio que devemos reconhecer a coragem de fazer o que o Singer faz. É o mais difícil de ser feito, isso de ir para o público, de dizer coisas como “comprar um anel de diamante é um absurdo, se tu podes usar este dinheiro para salvar uma vida”. Fácil é ser um estudante de filosofia em Southern Illinois e apontar para o Singer e dizer: “mas isso é perfeccionismo moral”.

Mas para mim o argumento que destrói a questão da obrigação moral ou do perfeccionismo moral é a questão de que para ser coerente, esta opção torna a vida humana quase impossível. E se no final do teu sistema tu chega à conclusão que quase todas nossas ações quotidianas são imorais, me desculpa, não é o planeta que está errado. É o teu argumento que é hiperbólico.

UPDATE: O crítica na rede fez uma pesquisa, e o pessoal chegou à conclusão que Peter Singer é o filósofo vivo mais influente. Aqui. Eu? Eu diria que  Honneth, Habermas e Agamben são mais influentes. Mas isso é questão de gosto.

8 comentários

  1. Replicando o comment do Getting jiggy with Fabs:
    Saca a história da casinha de bicicleta (bikeshed in english)?
    É o que eu acho do Singer. Ele tem um assunto mais fácil.

  2. moysespintoneto · · Responder

    1) O cinismo sempre pode vencer. Vivemos na era do cinismo, mais que qualquer outra. Isso porque a maioria das pessoas já reconhece certas coisas como justas, mas não está disposta a mover uma palha para torná-las efetivas. Do tipo: “sim, concordo com você, mas nem você faz isso, você também prefere um porsche a ajudar um morador de rua que usa crack 23 horas por dia”. Por essas e outras, estamos na merda total. A mim o cinismo parece simplesmente um descomprometimento inadmissível com tudo. A chance do pessimismo (e outra face do cinismo) vencer a esperança é a mesma do inverso.
    2) Creio que o problema de todos esses filósofos de raiz analítica é que tratam tudo como cálculo racional. A vida não é um cálculo racional. Cara, acorda, tu nem faz uma planilha de excel pra controlar teus gastos mensais! Por quê? Ora, somos humanos, demasiado humanos.
    3) Daí que eu continuo o item anterior: luxo tem tudo a ver. Battaille, um dos poucos a estudar o assunto (“A Parte Maldita”), sempre ressaltou a importância do excesso e dispêndio como parte constitutiva da nossa humanidade. A psicanálise tb vai por esse caminho.
    4) No mais, eu concordo com o Singer, não por essa visão racional-matemática, mas pela ausência de vergonha do habitante de um país em que há um número inaceitável de crianças na sinaleira (não que eu queira tocar a polícia nelas, como certos blogs políticos andam pedindo), miséria extrema, sair por aí dirigindo uma ferrari como se nada fosse com ele — e ainda com adesivo “chega de imposto!” ou “chega de violência” colada na janela. É uma palhaçada.

  3. moysespintoneto · · Responder

    Aliás, só acrescentando, a vergonha ainda é pouco estudada na ética, e creio que é fundamental. Os próprios levinasianos deixam de lado que em “Totalidade e Infinito” Levinas mostra que a transcendência se abre não por um “perfeccionismo” franciscano (o que pode remeter a outros trabalhos dele, quando trabalha a santidade), mas pela vergonha da liberdade arbitrário em relação ao outro que se apresenta.

    1. Bah, tu vais passar muito trabalho para me convencer que Levinas não é um perfeccionista moral.
      Algumas highlights:
      “O poder do eu não percorrerá a distancia indicada pela alteridade do outro. […] O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não ‘formal, de uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistencia ao Mesmo” [TI:26]
      “Aqui procura dizer-se a incondição do sujeito, que não tem o estatuto de princípio. Uma condição que confere um sentido ao próprio ser e acolhe a sua gravidade: é como repousante sobre um Se que suporta todo ser, que o ser se recolhe em unidade do universo e a essencia se recolhe em evento. O Se é Sub-jectum: é sob o peso do universo – responsável de tudo. A unidade do unvierso não é o que o meu olhar abraça na unidade da apercepção, mas aquilo que de todos os lados me toca, me diz respeito me acusa, é meu problema”[AQE, 182-183]

      “o Infinito significa a partir da responsabilidade por outrem, do um-para-outro, de um sujeito que suporta tudo – sujeito a tudo – que sofre por todos, ma encarregado de tudo; sem ter tido que decidir deste tomar a cargo que se amplifica gloriosamente à medida que se impõe.”[AQE, 232]
      E finalmente, com chave de ouro:
      “Bondade, virtude infantil; mas já caridade e misercórdia e responsabilidade para com outrem, e já possibilidade do sacrifício em que a humanidade do homem desabrocha, rompendo a economia geral do real e decidindo sobre a perseverança dos entes que se obstinam em seu ser: por uma condição em que outrem passe antes de si mesmo. Desinteressamento da bondade: outrem em sua súplica, que ‘uma ordem, outrem como rosto, outrem que me diz respeito [que me observa] mesmo quando não me olha, outrem como próximo e sempre estranho – bondade como transcendência; e eu, aquele que é obrigado a responder, o insubstituível e, assim, o eleito e, desse modo, verdadeiramente único. Bondade para o primeiro que vem, direito do homem. Direito do outro homem antes de mais nada.”[EN, 266]

      Se ISSO não é perfeccionismo moral…

  4. Legal que a gente começa falando de Peter Singer e termina falando de Levinas :P

  5. Para mim tu apontas no ponto cego da argumentação do Singer. A questão para mim ultrapassa a responsabilidade pessoal. Ninguém é obrigado a ser ético, a ser solidário ou a agir da forma como eu ou tu esperamos ser adequada. Aí que entra a importância de um Estado que garante um set mínimo de direitos a partir do qual as pessoas possam procurar seus planos de vidas individuais. Daí a importância também de uma taxação progressiva que dê conta disso.

    Um pouco da desgraça da ideologia da des-regulamentação é que ela transmite um plano de vida individual (acumulação livre de capital) como função do Estado. Daí o Estado se transforma em um veículo para o teu interesse, ou para um interesse difuso, e a possibilidade de uma justiça pública, ou de uma justiça social vai ralo abaixo. Taí Wall-Street para nos mostrar isso.

    Eu argumentaria, sempre, que é uma questão de regulamentação da atuação privada. Uma regulamentação mínima, mas que se bem feita consegue dar conta das partes mais brutais da tendencia ao egoísmo que a gente muitas vezes demonstra. Uma espécie de solidariedade forçada via “pública”.

    A questão da responsabilidade pessoal é uma discussão – totalmente – diferente, e daí vai ser também ligada ao nível da discussão. Seja ele sobre a moralidade do agir, da legalidade do agir e mesmo do “agir”. Mas deixo isso para minhas considerações futuras sobre epistemologia(?) moral.

  6. Quanto “para mim”, neste comentário ali em cima.
    Foi mal.

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